- Quantas vidas escondes?
- Muitas. Tantas. Nenhumas. Às vezes nem a minha.
- E tu?
- Só esta noite. Eu. Esta noite demais.
- Quanto é demais?
- Demais é pouco. Não demores. Descose-me, lentamente, pelas costuras.
Satie levanta-se do sofá e senta-se ao piano que está escondido no canto da sala. Consigo o ouvir enquanto arrasta os pés. Nasce o marfim. O branco. O preto. Florescem ruídos. A casa enche-se. Respira. As paredes abrem-se e fecham-se. Vejo como se expandem. Como se dilatam. Tenho as mãos. As tuas mãos. As tuas mãos como algemas presas ao meu pescoço. O zinco que cresce nas tuas mãos transformado em algemas. E tu, muito parada, suspensa no éter, nem reparas. Nem me reparas. Nem me olhas. Apenas o zinco. E nem precisas de me reparar ou olhar. Sabes-me algemado.
Talvez pela luz. Talvez pela pele. O cigarro preso na minha boca treme-me. As cinzas espalham-se pelo meu pescoço e sopras-me como se fossem pétalas. O fumo ergue-se diante dos teus olhos. Cinzento. Formam-se sombras absurdas que se dissipam. Antes de se dissiparem, brincas com os teus dedos entre elas. Brincas como uma criança que pinta quadrados e cículos. Uma criança que finge ser maestro a dirigir uma orquestra invisível com o dedo. Basta-te um dedo. A tua varinha mágica com a estrela na ponta. E neste quarto o oxigénio tende a desvanecer.
Apagas-me as luzes. Abres-me a persiana. Vendes-me alquimias.
Combinas os lábios com as unhas. Ou as unhas com os lábios. Não é novidade não entender as tuas mecânicas. Sei-os pintados com uma precisão cirúrgica. A tua pele amarelada pelas luzes da rua. Avanças suavemente sobre mim. A tua camisola abre-se, quase pendurada. Espreito-te por entre o tecido. Espreito-te como um segredo muito meu. És um pequeno pecado que não se conta ao ouvido de ninguém. Reparo na tua forma delicada. Frágil. A tua camisola aberta e os meus olhos fixados nas palavras que são âncoras na minha garganta. Não demoras a fugir-me desse estado imigrante e em rapidez roubas-me o cigarro só para ti. Fazes caretas, metes a língua de fora, gozas comigo enquanto o fumas e prometo-me, baixinho, um dia aprender todos os teus dialectos.
Satie pára. Cala-se. Doem-lhe os dedos. Desaparece tal fantasma e leva no bolso do casaco todas as lizes da casa. Volta o silêncio. As paredes transformam-se em cimento pintado. Restam-nos as cores metálicas da rua. Os passeios. As estradas. Ouço o asfalto a partir-se. Nascem pequenas chamas enquanto todos os passos se calam. Fogo claro. Fogo escuro.
- Sinto-me a morrer. Tenho os pulmões doente. Preciso do teu ar.
Como um animal domesticado aproximas a tua boca da minha. Ficas na margem. Margem dos teus lábios. Margem dos meus lábios. vais respirando as sobras do meu ar. Roubando-as. Roubando-me cada vez mais do meu peito. Sinto os meus pulmões a ficarem pequenos. Tão pequenos que cabem nas tuas mãos. Tão pequenos que os podes guardar dentro das tuas mãos. As tuas mãos que não são mãos. As tuas mãos que são algemas de zinco presas ao meu pescoço. E o meu ar a ser o teu ar. Eu a respirar as sobras do teu ar. Eu a respirar porque me deixas respirar. Porque me queres a respirar. O meu pescoço muito preso às tuas algemas de zinco que são mãos onde guardas os meus pequenos pulmões. As tuas mãos a formarem uma concha. Tudo enquanto aguardo os teus lábios na margem dos meus. O meu corpo renasce nesse preciso momento. Renasce declarando-te guerra. Guerra aberta. Guerra sem bandeira branca erguida em uma ou outra qualquer altura. Guerra em que agarro e puxo. As minhas pernas tentam prender-te para me devolveres os meus pequenos pulmões que pedem para serem gigantes novamente. Com um grito mudo, acalmas-me. Quebras a distância. Deixa de existir qualquer margem, qualquer limite. Levas os teus lábios aos meus e começas a beijar-me. Um beijo, só, com os lábios. Lábios com lábios. Os meus lábios sexos pela falta de ar a receberem-te como água. Abres gentilmente a minha boca e deslizas a tua língua. Vou ao encontro dela. Em pressa, corremos para as nossas línguas. Duas bailarinas. Aquelas bailarinas guardadas em caixas de música. Começo a esquecer-me do meu corpo, que tenho corpo, que é apenas um passageiro neste bailado. As nossas línguas demoradas a despirem-se, a tocarem-se, a ganharem mãos , pés, unhas, fome, a deuxarem a roupa espalhada pelo céu das nossas bocas. As nossas línguas a fazerem amor. A saliva em fios, que tanto bebo, e uma cama macia com almofadas de penas. Daquelas camas que vemos nos filmes antigos, em que um Sultão se deita e espreguiça e adormece deixando na porta qualquer guerra ou arma. Adormeces-me qualquer guerra. Qualquer faca mais afiada que guarde no cinto. Tudo enquanto a tua língua faz amor com a minha língua num prazer líquido e distante. Tão distante que não conseguimos tocar com os dedos. Que é impossível de tocar com os dedos. Um prazer proibido ao toque. Só permitido ao sentimento. Só pode ser sentudo. Em uma cama de saliva. Em roupas atiradas ao céu das nossas bocas. O céu do céu. O céu do teu céu. Desabotoo os teus cabelos pintados de sol e ouro. As cordas dele começam a confundir-se com estas teias que nos penduram. Que nos atam. Os fios que se predem e rasgam. E no rasgar sais-me. Sais-me tão bruscamente que os meus dentes encaixam nas tuas falhas e abrem uma delas. Uma qualquer. Surge o vermelho. Agarro na tua nuca, como um homem com corpo, com alma, com decisão e bebo. Bebo-te. Como se fosse atingido por uma febre que ama e precisa da tua minúscula falha. Febril, limpo-te qualquer vestígio. Limpo-te de qualquer outra cor. Os teus lábios devem combinar com as tuas unhas. Ou as tuas unhas com os teus lábios. Já te disse, nunca entendi essas tuas mecânicas. Os fogos calam-se. Satie bate na porta de casa. Sinto-te humana.
Profano todas as linhas que salivo neste festim nocturno.