24 de setembro de 2014

There.


Por vezes as palavras pulsam na violência do desejo: esse fio fino e sensível a dilacerar a pele, a dilatar os poros. Abrir o livro, encontrar-te sempre nas mesmas páginas é o principiar de uma viagem pela volúpia. É doar a minha carne aos teus sons. A impossibilidade de estar contigo agudiza-me os sentidos. Escrevo. O meu corpo quer dissolver-se nestes instantes em que a gravidade revela a sua presença. Ser névoa espessa e dourada. Habitar-te por parte completa das cores que desconheces.
Mordes-me a realidade. Recordas-me que por muito que escreva a palavra exacta será sempre a que guardas abotoada na margem dos teus lábios. Alienar-me com o texto onde és a minha - perfeita - linguagem paradisíaca.


23 de setembro de 2014

[in] Complete.


E isto não é morrer ou viver. Isto é outra coisa qualquer. Isto é uma maldição: a maldição dos amores, dos apaixonados, dos amantes. A maldição das sintonias, das vontades, da embriaguez, da sofreguidão pelas palavras. Isto é a eternidade gratuita. Passada de pele a papel. Passada de saliva a tinta. Passada do nosso tamanho para tamanho 11 ou 12.


16 de setembro de 2014

Remains.


já tudo nos sobra:

          os dedos perderam o tactear
          os lábios secaram a saliva
          os corações tombam para a fronteira


nas margens fico-me muito calado na esperança de voltar a pulsar


15 de setembro de 2014

Hall.


- Quantas vidas escondes?


- Muitas. Tantas. Nenhumas. Às vezes nem a minha.


- E tu?


- Só esta noite. Eu. Esta noite demais.


- Quanto é demais?


- Demais é pouco. Não demores. Descose-me, lentamente, pelas costuras.


Satie levanta-se do sofá e senta-se ao piano que está escondido no canto da sala. Consigo o ouvir enquanto arrasta os pés. Nasce o marfim. O branco. O preto. Florescem ruídos. A casa enche-se. Respira. As paredes abrem-se e fecham-se. Vejo como se expandem. Como se dilatam. Tenho as mãos. As tuas mãos. As tuas mãos como algemas presas ao meu pescoço. O zinco que cresce nas tuas mãos transformado em algemas. E tu, muito parada, suspensa no éter, nem reparas. Nem me reparas. Nem me olhas. Apenas o zinco. E nem precisas de me reparar ou olhar. Sabes-me algemado.
Talvez pela luz. Talvez pela pele. O cigarro preso na minha boca treme-me. As cinzas espalham-se pelo meu pescoço e sopras-me como se fossem pétalas. O fumo ergue-se diante dos teus olhos. Cinzento. Formam-se sombras absurdas que se dissipam. Antes de se dissiparem, brincas com os teus dedos entre elas. Brincas como uma criança que pinta quadrados e cículos. Uma criança que finge ser maestro a dirigir uma orquestra invisível com o dedo. Basta-te um dedo. A tua varinha mágica com a estrela na ponta. E neste quarto o oxigénio tende a desvanecer.


Apagas-me as luzes. Abres-me a persiana. Vendes-me alquimias.


Combinas os lábios com as unhas. Ou as unhas com os lábios. Não é novidade não entender as tuas mecânicas. Sei-os pintados com uma precisão cirúrgica. A tua pele amarelada pelas luzes da rua. Avanças suavemente sobre mim. A tua camisola abre-se, quase pendurada. Espreito-te por entre o tecido. Espreito-te como um segredo muito meu. És um pequeno pecado que não se conta ao ouvido de ninguém. Reparo na tua forma delicada. Frágil. A tua camisola aberta e os meus olhos fixados nas palavras que são âncoras na minha garganta. Não demoras a fugir-me desse estado imigrante e em rapidez roubas-me o cigarro só para ti. Fazes caretas, metes a língua de fora, gozas comigo enquanto o fumas e prometo-me, baixinho, um dia aprender todos os teus dialectos.

Satie pára. Cala-se. Doem-lhe os dedos. Desaparece tal fantasma e leva no bolso do casaco todas as lizes da casa. Volta o silêncio. As paredes transformam-se em cimento pintado. Restam-nos as cores metálicas da rua. Os passeios. As estradas. Ouço o asfalto a partir-se. Nascem pequenas chamas enquanto todos os passos se calam. Fogo claro. Fogo escuro.


- Sinto-me a morrer. Tenho os pulmões doente. Preciso do teu ar.


Como um animal domesticado aproximas a tua boca da minha. Ficas na margem. Margem dos teus lábios. Margem dos meus lábios. vais respirando as sobras do meu ar. Roubando-as. Roubando-me cada vez mais do meu peito. Sinto os meus pulmões a ficarem pequenos. Tão pequenos que cabem nas tuas mãos. Tão pequenos que os podes guardar dentro das tuas mãos. As tuas mãos que não são mãos. As tuas mãos que são algemas de zinco presas ao meu pescoço. E o meu ar a ser o teu ar. Eu a respirar as sobras do teu ar. Eu a respirar porque me deixas respirar. Porque me queres a respirar. O meu pescoço muito preso às tuas algemas de zinco que são mãos onde guardas os meus pequenos pulmões. As tuas mãos a formarem uma concha. Tudo enquanto aguardo os teus lábios na margem dos meus. O meu corpo renasce nesse preciso momento. Renasce declarando-te guerra. Guerra aberta. Guerra sem bandeira branca erguida em uma ou outra qualquer altura. Guerra em que agarro e puxo. As minhas pernas tentam prender-te para me devolveres os meus pequenos pulmões que pedem para serem gigantes novamente. Com um grito mudo, acalmas-me. Quebras a distância. Deixa de existir qualquer margem, qualquer limite. Levas os teus lábios aos meus e começas a beijar-me. Um beijo, só, com os lábios. Lábios com lábios. Os meus lábios sexos pela falta de ar a receberem-te como água. Abres gentilmente a minha boca e deslizas a tua língua. Vou ao encontro dela. Em pressa, corremos para as nossas línguas. Duas bailarinas. Aquelas bailarinas guardadas em caixas de música. Começo a esquecer-me do meu corpo, que tenho corpo, que é apenas um passageiro neste bailado. As nossas línguas demoradas a despirem-se, a tocarem-se, a ganharem mãos , pés, unhas, fome, a deuxarem a roupa espalhada pelo céu das nossas bocas. As nossas línguas a fazerem amor. A saliva em fios, que tanto bebo, e uma cama macia com almofadas de penas. Daquelas camas que vemos nos filmes antigos, em que um Sultão se deita e espreguiça e adormece deixando na porta qualquer guerra ou arma. Adormeces-me qualquer guerra. Qualquer faca mais afiada que guarde no cinto. Tudo enquanto a tua língua faz amor com a minha língua num prazer líquido e distante. Tão distante que não conseguimos tocar com os dedos. Que é impossível de tocar com os dedos. Um prazer proibido ao toque. Só permitido ao sentimento. Só pode ser sentudo. Em uma cama de saliva. Em roupas atiradas ao céu das nossas bocas. O céu do céu. O céu do teu céu. Desabotoo os teus cabelos pintados de sol e ouro. As cordas dele começam a confundir-se com estas teias que nos penduram. Que nos atam. Os fios que se predem e rasgam. E no rasgar sais-me. Sais-me tão bruscamente que os meus dentes encaixam nas tuas falhas e abrem uma delas. Uma qualquer. Surge o vermelho. Agarro na tua nuca, como um homem com corpo, com alma, com decisão e bebo. Bebo-te. Como se fosse atingido por uma febre que ama e precisa da tua minúscula falha. Febril, limpo-te qualquer vestígio. Limpo-te de qualquer outra cor. Os teus lábios devem combinar com as tuas unhas. Ou as tuas unhas com os teus lábios. Já te disse, nunca entendi essas tuas mecânicas. Os fogos calam-se. Satie bate na porta de casa. Sinto-te humana.


Profano todas as linhas que salivo neste festim nocturno.


11 de setembro de 2014

Less.


Não. Não me acordes. Nem tentes. Deixa-me estar assim. Deixa-me ficar assim. Exactamente assim. Não me beijes. Não me toques. Não me movas. Não te movas. Não. Nem um centímetro para a direita ou para a esquerda. Não me balances. Nem para a frente ou para trás. Assim. Só assim. Contigo em mim. Contigo dentro de mim. Ao mais ligeiro beijo ou toque ou movimento irei desfazer-me. Irei desaparecer. Transformo-me em uma estátua moldada em pólen. Tu sabes que sim. Eu sei que tu sabes que sim. Uma estátua moldada em pólen e proibida. Proibida ao vento. Proibida na língua e no respirar de qualquer animal. Poibida até a ti. Mas tu não és qualquer animal. Não és um animal sequer. És um deus. Um deus menor. Um deus pequeno e silencioso. Daqueles que esquecemos o nome. Daqueles que esquecemos a existência. Daqueles que só servem para a fome. Um deus menor. Muito menor. Silencioso. Comprometido às minhas vontades. Um deus que não sabe o que é ser rezado. Que só sabe rezar. E deixo de ser estátua moldada em pólen e proibida para ser medusa. Medusa em cima de um deus muito menor e silencioso do qual não sabem o nome. Do qual esquecem querer saber o nome. O qual me serve, apenas para servir, apenas para caber em mim. Do qual eu quero na fome. Da fome. Medusa contigo em mim e dentro de mim. Não ves? Olha-me! Não tenhas medo meu pequeno deus. Olha-me. Olha-me como se nunca tivesses olhado. Olha-me muito. Olha-me sempre. Olha-me e sente as tuas mãos a transformarem-se em âncoras de pedra cravadas nos lençóis. Olha-me! Olha-me porque não és nenhum herói, não tens espada ou escudo ou armadura. Olha-me porque és um deus muito menor, muito pequeno, do tamanho de uma agulha. O teu nome foi esquecido. É esquecido. Foi esquecido e é esquecido porque é meu. Roubei-o para mim. Roubar o teu nome é roubar quem és. O teu nome é tudo, e sem ele não sabes o que é rezarem-te. Sou má. Sou egoista. Se o fiz é porque és tu que me transformas em estátua moldada em pólen. Porque és tu que me transformas em medusa. Porque és tu que me fazes transformar-te em deus menor e silencioso. Para sentires, contigo dentro de mim, contigo a caberes-me, como é que me liquidifico. Sentes? Sentes-me líquida. Sentes-me a deixar de ser tudo isto para ser orvalho? Claro que sentes. Claro que me sentes. Como poderias não o sentir. Como poderias não sentir-me. As tuas mãos estão como âncoras de pedra cravadas nos lençóis e o resto de ti são docas onde atraco, onde a minha maré bate, onde o meu sal é marca. Já te disse que não. Não me acordes. Nem tentes. Deixa-me estar assim. Mesmo assim. Deixa-me morrer. Deixa-me morrer uma e duas e três vezes. Deixa-me morrer as vezes que eu quiser. Deixa-me morrer com a pele em pólen. Com a pele mais clara que as estrelas. Deixa-me morrer como estrela. Depois irei renascer. Renascer e lentamente despertar para voltar a adormecer. Renascer as vezes que eu quiser. Tal como morrer. Mas antes de morrer serei estátua moldada em pólen para depois ser medusa. Para olhares-me como quem nunca olhou, como quem nunca conheceu, como quem nunca viu e as tuas mãos como âncoras em pedra cravadas nos lençóis. E eu a liquidificar-me novamente. Novamente em orvalho. As minhas marés, as minhas ondas, o meu sal, tudo a caber em ti da mesma forma que cabes em mim. Eu. Só eu. Tu não. Tu nunca. Eu como estrela no limite do seu brilho a explodir. A explodir e a queimar as folhas de todos os livros que tanto insistes em me ler, de todas as palavras que tanto insistes em me dizer. Explodir e a queimar toda essa tua insistência em esconderes o medo que a minha beleza provoca. Eu sei que tens medo. Eu conheço esse teu medo. Eu conheço o paladar desse teu medo. Agora estás sem folhas, sem letras, sem palavras, sem voz. Agora conheces como começo a explodir e a queimar e o medo arromba as tuas portas. E o medo entra e enche-te. E tremes. Tremes no assombro. Tremes no não saberes o que fazer com a minha beleza. Porque assusta-te. Porque queres assustar o medo. Porque por mais que tentes guardar a minha beleza entre as as folhas e as letras e as palavras e a voz, nunca o irás conseguir. Nunca serás dono da minha beleza. Nunca. Nunca porque eu não sou apenas uma beleza. Não sou apenas uma mulher. Sou toda a beleza. Sou todas as mulheres. Sou aquela que guarda em pólen e em pedra todas as mulheres que um dia desejaste ou quiseste. Sou todas as mulheres porque és só e apenas meu. Sou todas as mulheres porque a minha beleza não é de guardar. Porque a minha beleza não é de usar. Porque quando cabes em mim e deslizo os meus lábios para beber todo o teu medo adormeces. Sou toda a beleza e todas as mulheres para nunca mais saberes o que é desejar ou precisar ou querer outra beleza ou outra mulher. Não tremas meu pequeno deus. Não tenhas medo meu deus menor. Não te assustes meu deus do tamanho de uma agulha. Foste feito para não saberes o que é rezarem-te. Foste feito para eu constuir e ordenar o teu caos. Sou toda a beleza. A beleza queima o caos. Sou todas as mulheres. As mulheres gostam de ordem. Foste feito para rezares-me e saberes que não me tens porque não sou de ter. Foste feito para saberes que nunca me irás possuir. Porque és meu. Porque és só e apenas meu. E agora? Agora não me acordes. Já o disse várias vezes. Agora não me beijes, não me toques, não me movas, não te movas. Agora nem tentes sequer. Agora deixa-me estar assim. Exactamente assim. Agora sente-me adormecida. Sente-me a morrer. Sente-me a querer morrer vezes sem conta. Sente-me estátua moldada em pólen e medusa. Sente-me a brilhar como uma estrela pronta a morrer e a renascer. Agora cabes todo em mim. Cabes todo dentro de mim. O teu lugar é assim, pertenceres-me. Agora, não só agora, mas especialmente agora, sente-me a explodir e a queimar e a ser maré. Sente-me porque sou líquida quando te tenho como deus menor, deus muito menor, deus pequeno. O meu pequeno deus. O meu pequeno amor.