Não.
Não me acordes. Nem tentes. Deixa-me estar assim. Deixa-me ficar
assim. Exactamente assim. Não me beijes. Não me toques. Não me
movas. Não te movas. Não. Nem um centímetro para a direita ou para
a esquerda. Não me balances. Nem para a frente ou para trás. Assim.
Só assim. Contigo em mim. Contigo dentro de mim. Ao mais ligeiro
beijo ou toque ou movimento irei desfazer-me. Irei desaparecer.
Transformo-me em uma estátua moldada em pólen. Tu sabes que sim. Eu
sei que tu sabes que sim. Uma estátua moldada em pólen e proibida.
Proibida ao vento. Proibida na língua e no respirar de qualquer
animal. Poibida até a ti. Mas tu não és qualquer animal. Não és
um animal sequer. És um deus. Um deus menor. Um deus pequeno e
silencioso. Daqueles que esquecemos o nome. Daqueles que esquecemos a
existência. Daqueles que só servem para a fome. Um deus menor.
Muito menor. Silencioso. Comprometido às minhas vontades. Um deus
que não sabe o que é ser rezado. Que só sabe rezar. E deixo de ser
estátua moldada em pólen e proibida para ser medusa. Medusa em cima
de um deus muito menor e silencioso do qual não sabem o nome. Do
qual esquecem querer saber o nome. O qual me serve, apenas para
servir, apenas para caber em mim. Do qual eu quero na fome. Da fome.
Medusa contigo em mim e dentro de mim. Não ves? Olha-me! Não tenhas
medo meu pequeno deus. Olha-me. Olha-me como se nunca tivesses
olhado. Olha-me muito. Olha-me sempre. Olha-me e sente as tuas mãos
a transformarem-se em âncoras de pedra cravadas nos lençóis.
Olha-me! Olha-me porque não és nenhum herói, não tens espada ou
escudo ou armadura. Olha-me porque és um deus muito menor, muito
pequeno, do tamanho de uma agulha. O teu nome foi esquecido. É
esquecido. Foi esquecido e é esquecido porque é meu. Roubei-o para
mim. Roubar o teu nome é roubar quem és. O teu nome é tudo, e sem
ele não sabes o que é rezarem-te. Sou má. Sou egoista. Se o fiz é
porque és tu que me transformas em estátua moldada em pólen.
Porque és tu que me transformas em medusa. Porque és tu que me
fazes transformar-te em deus menor e silencioso. Para sentires,
contigo dentro de mim, contigo a caberes-me, como é que me
liquidifico. Sentes? Sentes-me líquida. Sentes-me a deixar de ser
tudo isto para ser orvalho? Claro que sentes. Claro que me sentes.
Como poderias não o sentir. Como poderias não sentir-me. As tuas
mãos estão como âncoras de pedra cravadas nos lençóis e o resto
de ti são docas onde atraco, onde a minha maré bate, onde o meu sal
é marca. Já te disse que não. Não me acordes. Nem tentes.
Deixa-me estar assim. Mesmo assim. Deixa-me morrer. Deixa-me morrer
uma e duas e três vezes. Deixa-me morrer as vezes que eu quiser.
Deixa-me morrer com a pele em pólen. Com a pele mais clara que as
estrelas. Deixa-me morrer como estrela. Depois irei renascer.
Renascer e lentamente despertar para voltar a adormecer. Renascer as
vezes que eu quiser. Tal como morrer. Mas antes de morrer serei
estátua moldada em pólen para depois ser medusa. Para olhares-me
como quem nunca olhou, como quem nunca conheceu, como quem nunca viu
e as tuas mãos como âncoras em pedra cravadas nos lençóis. E eu a
liquidificar-me novamente. Novamente em orvalho. As minhas marés, as
minhas ondas, o meu sal, tudo a caber em ti da mesma forma que cabes
em mim. Eu. Só eu. Tu não. Tu nunca. Eu como estrela no limite do
seu brilho a explodir. A explodir e a queimar as folhas de todos os
livros que tanto insistes em me ler, de todas as palavras que tanto
insistes em me dizer. Explodir e a queimar toda essa tua insistência
em esconderes o medo que a minha beleza provoca. Eu sei que tens
medo. Eu conheço esse teu medo. Eu conheço o paladar desse teu
medo. Agora estás sem folhas, sem letras, sem palavras, sem voz.
Agora conheces como começo a explodir e a queimar e o medo arromba
as tuas portas. E o medo entra e enche-te. E tremes. Tremes no
assombro. Tremes no não saberes o que fazer com a minha beleza.
Porque assusta-te. Porque queres assustar o medo. Porque por mais que
tentes guardar a minha beleza entre as as folhas e as letras e as
palavras e a voz, nunca o irás conseguir. Nunca serás dono da minha
beleza. Nunca. Nunca porque eu não sou apenas uma beleza. Não sou
apenas uma mulher. Sou toda a beleza. Sou todas as mulheres. Sou
aquela que guarda em pólen e em pedra todas as mulheres que um dia
desejaste ou quiseste. Sou todas as mulheres porque és só e apenas
meu. Sou todas as mulheres porque a minha beleza não é de guardar.
Porque a minha beleza não é de usar. Porque quando cabes em mim e
deslizo os meus lábios para beber todo o teu medo adormeces. Sou
toda a beleza e todas as mulheres para nunca mais saberes o que é
desejar ou precisar ou querer outra beleza ou outra mulher. Não
tremas meu pequeno deus. Não tenhas medo meu deus menor. Não te
assustes meu deus do tamanho de uma agulha. Foste feito para não
saberes o que é rezarem-te. Foste feito para eu constuir e ordenar o teu
caos. Sou toda a beleza. A beleza queima o caos. Sou todas as
mulheres. As mulheres gostam de ordem. Foste feito para rezares-me e
saberes que não me tens porque não sou de ter. Foste feito para
saberes que nunca me irás possuir. Porque és meu. Porque és só e
apenas meu. E agora? Agora não me acordes. Já o disse várias
vezes. Agora não me beijes, não me toques, não me movas, não te
movas. Agora nem tentes sequer. Agora deixa-me estar assim.
Exactamente assim. Agora sente-me adormecida. Sente-me a morrer.
Sente-me a querer morrer vezes sem conta. Sente-me estátua moldada
em pólen e medusa. Sente-me a brilhar como uma estrela pronta a
morrer e a renascer. Agora cabes todo em mim. Cabes todo dentro de
mim. O teu lugar é assim, pertenceres-me. Agora, não só agora, mas
especialmente agora, sente-me a explodir e a queimar e a ser maré.
Sente-me porque sou líquida quando te tenho como deus menor, deus
muito menor, deus pequeno. O meu pequeno deus. O meu pequeno amor.
Less is more.
ResponderEliminarTexto de Pedro Paixão?
ResponderEliminarAnónimo(a) n.º1,
ResponderEliminarPor vezes, "less is more". :)
Grato,
J.
Anónimo(a) n.º2,
ResponderEliminarNão, este texto é meu. Se fosse do Pedro, teria o identificado como tal. Todos os textos que estão neste Blog que não são meus encontram-se devidamente identificados.
Mas, agradeço o "elogio". :)
Grato,
J.
Tinha saudades de te ler assim. Cru.
ResponderEliminarIdentifico-me. Vá-se lá saber porquê, mas identifico.
Esse deus pequeno, menor. Esse amor pequeno.
Haja ainda quem se reze. Amén!
Anónimo(a) n.º3,
ResponderEliminarObrigado. :)
Rezar é sempre um acto de fé. Maior ou menor, tudo se transforma.
Grato,
J.
Rezar nem sempre é um acto de fé... :) assim como nem sempre "less is more"
ResponderEliminarAnónimo(a) n.º3,
ResponderEliminarDava para correr muita "tinta". :)
Correcto. Por isso o "talvez".
Grato,
J.
Sim... daria, sim. Demasiada.
ResponderEliminarNão houve um "talvez", houve um "sempre". Daí ter respondido que rezar nem sempre é um acto de fé.
Grata,
R.
R.,
ResponderEliminarConcordamos em discordar.
Grato,
J.
:)
ResponderEliminarSempre.
R.