Sentada, do outro lado do firmamento, peço-te:
-
Deita-me. Humedece as tuas mãos pela tinta de uma caneta. O meu peito.
Abre-o. Força as tuas unhas pelas minhas costuras. Rasga-o. Tal como
fazes com o papel de embrulho de uma prenda, com a ponta dos teus pés a
saltitar de euforia, arrancas o papel colorido de uma só vez. E deixa a
tinta de tuas mãos a babar para dentro dele. Transforma-me em uma sombra
desligada do chão. Toma-te por minha.
Passo
horas, assim, com tuas mãos em meu peito, a olhar para uma folha em
branco. A absorver o seu sentido de "claridade". A absorver o seu
sentido de "limpeza". A absorver o seu sentido de "e". A absorver o seu
sentido de "ruído". Branco. Apenas e só branco.
É
com naturalidade que procuramos assumir uma determinada ordem. Ou
impor. Ou até criar. Ordem ajuda a identificar os comportamentos, os
objectos, os pensamentos, as limitações, as barreiras. Ordem é a
parteira da Esperança e da sua prole.
De
joelhos, acendes-me um cigarro. Não me moves, nem tentas. Levas o
filtro até mim, deixando-me respirar as ondas de fumo acinzentado.
Repetes este movimento inúmeras vezes até o cigarro se apagar.
Elevas
o teu corpo, observo toda a gentileza dos teus movimentos. Os pés
descalços. O som dos teus pés descalços. O eco dos teus pés descalços.
Não és tu que usas esse vestido vermelho, o vestido usa-te, deixando a
forma dos teus ossos, a forma da tua carne, ser o seu particular cabide.
Uma segunda e nova pele.
Deixo
de te ver, deixo de te observar. Sinto os teus passos próximos da minha
cabeça. O teu pé direito pelo canto do meu olho direito, o teu pé
esquerdo pelo canto do meu olho esquerdo. Ouço o teu corpo a descer.
Ouço a forma como te sentas. Deslizas para perto de mim sentada na
madeira. A minha cabeça entre as tuas coxas. A minha face tapada pelo
tecido. A luz que me rodeia ganha tonalidades vermelhas, transparentes,
difusas, quentes. A minha respiração a inflamar o tecido. Suspiras entre
um sorriso.
- Quero-te para meu Capuchinho.
Levas
a mão dentro do vestido, deleitada, à procura da minha barba. As tuas
unhas brincam com os meus pêlos espessos. Reparo que na varanda a chuva
tem nome. Chama. Grita. Geme. As fissuras da noite ganham vida em meu
olhos, em teu vermelho, a vontade imensa de recortar pedacinhos do teu
sorriso e remendar a noite.
Em
impulso salto da minha imobilidade, paro-me em frente dos teus olhos.
Olho-te, procuro-te, quero-te como um animal esfomeado. Com a vontade de
te caçar, de te assombrar a palpitar.
Levanto-te, abro o acesso até à varanda, inspiro a noite.
Pego em teu braço, arrasto-te até lá fora.
De
costas para mim, apoio as tuas mãos no corrimão molhado. Ficamos
imóveis, a chuva a ensopar a nossa pele. As nossas bocas. A ensopar o
meu peito aberto.
Sedento,
em rapidez, liberto-te da tua segunda pele. Ouço o som da chuva a
cobrir a linha do teu pescoço. Lentamente começo a inclinar as tuas
costas, reparo como a cidade brilha seus olhos amarelados por tua
cintura. Não libertas um único som. Nasces, aqui, como uma Deusa feita
de Vidro, pronta a ser adorada.
Sou
inundado. Inundado de fé, inundado pela vontade de acreditar, inundado
pela vontade de não explicar. Devoto, ajoelho-me, as minhas costas a
sentirem o ar quente em fuga da casa, encaixo a minha boca no fundo das
tuas costas, abrindo-a, bebendo a chuva que desce, que escorre, que
desliza, por tua espinha, por tua pele, por tuas formas, por tuas costas
transformadas em borboleta, por tuas costas transformadas em copo.
Bebo o teu paladar. Bebo os teus pecados. Bebo-te.
Subo
por ti como se fosses uma falésia, cravando as minhas unhas no espaço
das tuas costelas, friccionando-me contra a tua crueza, com meu bafo
quente, intermitente, nervoso, a preencher-te, com todo o cuidado, com
toda a precisão, se uma mão me falha não tenho nenhuma corda para
segurar-me. Subo. A linha que nos separa é ténue, invisível. Chegado ao
teu ouvido reparo na claridade de tua face, na cristalina forma que
espelhas nas gotículas.
A tremelicar, confesso-te:
- A única palavra que quero ouvir de teus lábios cerrados é um Foda-se.
Respondes:
- Reza-me
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